segunda-feira, 26 de dezembro de 2011

Cativo...




Olhou para o telemóvel pela última vez antes de ler o sorriso. Voltou ao seu lugar cativo na sua sala de gente familiar. Crepitava o fogo quente das chamas frias da sua lareira. Espalhavam-se os papéis desembrulhados dos presentes já sem laços, que persistiam na confusão dos risos dos miúdos irrequietos. E nas janelas reflectiam os gestos das conversas em que ele entrava com as palavras certas e os sinais de um casamento perfeito e conservado, ao mesmo sabor de todos os anos, nas douradas de mel caseiro, confeccionadas pelas mãos que já não adoçavam o seu corpo nem amaciavam a sua pele. Ela sentou-se ao seu lado enrolando a madeixa loira, enrolando o seu lugar de dona de um amor já sem dono. Um casal tão meticulosamente perfeito! Uma mesa recheada de receitas doces, mas que não curam as arritmias da ausência do desejo! Ela sabia isso. Ele respirava isso! Mas a madeixa esquecida no seu dedo melancólico, prendia-o a um quase obrigatório de ele se sentar esquecido de si, mas ao seu lado. E depois, pensava ela, aquela gente, bem ali à sua frente, não via, não sentia, não sonhava, que entre o cheiro a Natal daquela sala límpida e de luz, se deitava consigo um corpo morto de sentidos, quando todos fossem embora para suas casas, contagiados por um amor idealizado e irreal, que se provava nas sobremesas servidas no serviço de porcelana. E ela olhava-o embebida pelas suas palavras. Soletrava nos seus lábios finos as mesmas sílabas sem assento tónico do seu homem cativo. Degustava cada gesto das suas mãos morenas, prendia o olhar vigilante no movimento inconsequente do corpo grande dele e sentia-se senhora! Possuía! Tinha! O único pronome possível no seu léxico pobre de amar! O determinante possessivo «meu»! E a incapacidade de não sentir o desenlaço da alma dele, mais logo, na cama que já foi dos dois, e a incapacidade de entender a solidão dele, enroscado no abraço dela. Depois, ele levantou-se da conversa informal, retirou-se, sereno, da confusão que o cercava na noite alta e gélida que se prolongava nas horas. Desprendeu por momentos a corda que lhe apertava os pulsos e que era da mesma cor do laço vermelho do presente oferecido a pedido oficial. Esperou-a distraída. Olhou num lance rápido o telemóvel escondido no bolso dos jeans. Olhou. Mas não voltou a ver o sorriso! Engoliu o trago amargo. Pensou nela. Na outra, na do cabelo cor de avelã e de olhos quase verdes. Estaria onde e como e com quem. Alheou-se por instantes dos seu afazeres oficiais e domésticos. E quase a sentiu, preso ao seu odor, daquele perfume que o liberta da madeixa loira e melancólica, dos gestos formatados e das palavras politicamente correctas. E acordou, segundos bem próximos, com a voz da filha que o balançava, para as instruções do brinquedo novo. E obrigou-se para o sorriso dos lábios finos que o percorriam do outro lado da sala perfeita! Escondeu de novo o telemóvel, escondeu de novo a negação da paixão que ainda sentia! E deixou-se preso na imensidão do conforto doméstico da dourada com sabor a mel!

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