quarta-feira, 3 de abril de 2013

Penso, logo duvido


A minha cozinha cheira a café quente. Encho a jarra de rosas brancas e estrelícias, sem convenções que me possam apertar o peito. O meu gato é uma «oreo» esquecida no prato pela cabeça de vento do meu filho e olho para as horas de um tempo que passa na casa ainda adormecida, entre sol frio e vento que puxa chuva, vinda do meu mar, além da Serra do Nunca.

Nunca, assola-me perfeito na imperfeição dos meus dias. Que seja imperfeita, então! Prefiro assim. Um caminho alheio a linhas retas que não encontram o infinito e que não fazem parte do meu presente quase futuro. Escolho as curvas e contra curvas enroscadas entre o rio e as giestas, aquelas que desafiam a moral estúpida e formatada, com odor a circo e repasto grosseiro.

Creio que os silêncios também se dizem, mesmo que incompreensíveis para gentes domesticadas em dias de Páscoa, sem entendimento para além do roxo da redenção, esquecida do branco com que se veste a vida. A minha, pelo menos!

Pergunto-me se chegas e em que sentido obrigatório e não espero pela resposta. Penso em demasia. Se penso, duvido e a dúvida não entra nas cores com que escolhi vestir-me.

Encho a chávena de café forte e o açúcar mexido com pau de canela aromatiza a leitura da linha que contradiz o destino traçado por um deus inexistente.

O meu deus é homem. Que toco e cheiro e em que me peco sem religiões ou espartilhos. Só na imperfeição do meu Nunca em curvas finitas, definidas sem reflexões, só sentidos. Um amor empírico, categorizado num espaço sem tempo.

Pergunto-me se voltas. E não penso.
Rio, da moral de repasto e circo!


O outro lado da outra...

Estigmas tatuam identidades generalistas e com tatuagens pérfidas, marcadas a tinta permanente. A «outra» é um desses estigmas socialmente marcados por uma moral irrefletida, de fácil absorção, de fácil estereotipo que se transforma continuamente no preconceito que se grita a mil ventos, culturalmente formatado e de um provincianismo digno de uma crítica de costumes. A outra é a destruidora de lares, implacável sedutora, apenas fémea, que veste Prada, perfuma-se de Chanel, ameaçadoramente dentro de uma saia justa e decote pronunciado, lábio mordido, deslumbrante boneca de conteúdo vazio, no cabelo cuidadosamente penteado. A outra é perigosa. Não tem escrúpulos nem respeito. Demolidora de casamentos perfeitos e causa da depressão bárbara de donas de casa que perdem dono e rumo. Pecadoras de santos maridos que caem em tentação sem culpa. Pobres homens inocentemente levados pela luxúria que temem em não querer. Este é o estigma. E depois há a «outra», que tal como indica o nome, se indefine sem nome, porque é uma identidade proibida de se pronunciar na sala de jantar, durante a novela que se vê em família e no sofá repousante de final de noite. A «outra» também é mulher afinal! Não veste Prada muitas das vezes. Opta por ser simples outras tantas. Vai ao supermercado e enche de frutas e legumes e leite e iogurtes o carrinho das compras onde empurra a vontade dos filhos e os gostos gulosos de cada um dentro da sua casa. Sim! A «outra» também tem um lar. Também limpa o pó e passa a ferro as t-shirts os jeans e os lençóis. A outra calça pantufas muitas das vezes, em vez dos saltos altos e substitui a lingerie provocante por um pijama confortável de cores pastel e mimos infantis. A «outra» apressa mochilas pela manhã, estaciona em frente à escola dos filhos, prepara pequenos-almoços e sumos de laranja. Também tem as mãos enrugadas do detergente e nem sempre lhe apetece fazer a depilação conforme marcado na esteticista do bairro. E depois de todos os papeis que lhe são atribuídos no seu papel de não outra, ela espera! Sim. A «outra» é aquela que espera pacientemente por umas duas, três, no máximo umas quatro horas semanais, numa semana de sete dias com vinte e quatro horas, cada um deles! A «outra» é aquela que só pode tocar com o olhar quando está em público. Não lhe é permitido troca de dedos e de beijos na face roubados. Não pode frequentar o shopping preferido de mão dada, nem abraçar na maresia da praia durante o dia com sol a pique. A «outra» tem que ser aquela do pôr-do-sol, refúgio dos amantes camuflados de um esconde-esconde que por vezes sobressalta a alma. A «outra» não tem férias a dois, nem sofá à noite. Nem o filme enrolada na manta partilhada. Não telefona para o número da família, nem tem domingos de bicicleta e pão quente na padaria da vila. A «outra» também se define como o colo cúmplice, de quando tudo está mal no lar doméstico perfeito, que não é assim tão perfeito afinal! A «outra» é sexo sim, mas numa mistura de um amor que sabe sempre a pouco, quando a despedida marca as horas de correr para o jantar em família. A «outra» ouve. A «outra» abraça. A «outra» mima. A «outra» ri quando quer chorar. A «outra» ama em silêncio. A «outra» perde amores. Deixa passar os homens na sua vida sem bilhete de entrada para o palco do teatro do seu quotidiano. A «outra» finge que não ouve a voz do outro lado da linha e retira a cabeça do ombro a disfarçar que se interessa, num repente, pelo que está do outro lado da janela do carro. A «outra» afinal não é uma outra. É gente. Tem um nome. Tem sinais na pele. Tem uma impressão digital que também é única. Um bilhete de identidade. Mas de estado civil socialmente inaceitável e que cai no anonimato dos dias e das horas que não podem ser as suas! A outra afinal não tem aspas porque muitas, tantas e demasiadas vezes, ela é ela, quando a esposa se torna afinal na outra que obrigatoriamente se tem em casa!